quinta-feira, 29 de agosto de 2013

TODOS TÊM ALGUÉM PARA ODIAR

Por:Leandro Karnal*

José Saramago tem um livro genial, O Evangelho
Segundo Jesus Cristo, no qual o demônio se mostra
espantado com tantas atrocidades cometidas na história
do cristianismo, em nome de Deus Pai. E Deus diz:
não posso ser Deus se não houver o diabo. O ódio é
um elemento muito poderoso, que confere identidade.
As igrejas insistem na ação do demônio. A felicidade
mantém as coisas menos intensas. É preciso medo e
tensão. A ideia de que o ódio cria incentivos é manipulada
por um movimento que vira a base de nossa
identidade. Peque-se o amor universal, nos moldes da
proposta cristã. Amar a todos como devo amar o meu
filho com a mesma identidade se mostra irrealizável, porque devo amar mais quem me faz mal. É uma ideia
utópica bonita, mas as utopias estão fadadas ao fracasso.
Amóz Oz diz que Israel é uma utopia e, como toda
utopia, está destinada ao fracasso. Essa é uma discussão
complexa, mas, em todo caso, é fundamental que
o meu inimigo exista para eu saber quem sou. Uma
pesquisa nos Estados Unidos tentou mostrar quanto
dinheiro custa a felicidade. Foi estabelecido um número
que, no Brasil, seria o curioso patamar de R$ 11 mil
por mês. O mais discutível não é o número, mas o fato
de ignorar que o dinheiro que me traz felicidade é o
mesmo que tira a felicidade dos outros. Tenho de ganhar
mais do que meu cunhado ou meu vizinho. Minha
casa e meu filho têm de ser mais bonitos. Preciso
ser mais rico do que os outros para ter mais felicidade.


A felicidade que se sente com uma Ferrari é apenas
uma representação, pois é feita para o outro. Ela nem
é confortável, mas dá ao outro a noção do que não
se tem. Eu sugiro sempre aos meus alunos em sala
de aula: experimentem chegar para alguém ou para
algum grupo e dizer que seu signo é Aquário. Ouvirão
alguém informar que é de Libra, outro de Peixes
e assim por diante. As pessoas jamais entrarão na sua
conversa, mas falarão de si. Desolado você vai complementar:
“meu ascendente é Aquário.” Seu interlocutor
dirá que seu ascendente é Touro. Se vocês chegarem
esta noite em casa dizendo que estão cansados, provavelmente
ouvirão um “eu também estou”, e não uma
questão: “Amor, hoje seu dia foi particularmente pesado?”
Ninguém escuta, ninguém responde. Não há o
outro, só a si mesmo.

** ESTE TEXTO É PROPRIEDADE INTELECTUAL DO AUTOR **
Texto retirado do "Manuscritos sobre o ódio e a globalização"

*Leandro Karnal Possui graduação em Historia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos(1985) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo(1994). Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas e Membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História (Impresso). Tem experiência na área de História.

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